Na quarta-feira, dia 1 de Abril, às 18h30, no Pequeno Auditório da Culturgest, terá início o ciclo de cinema Ouvir: Ver – A experiencia do som no cinema, com programação de Ricardo Matos Cabo. A natureza das relações entre o som e a imagem no cinema foi o ponto de partida para este programa. Não é estritamente um programa sobre o som no cinema, ou sobre o desenvolvimento do sonoro, mas um percurso por diversas formas de pensar as complementaridades entre o som e a imagem; por tentativas de harmonização/conflito entre os dois elementos; finalmente, por uma série de obras muito diversas entre si que privilegiam as questões relacionadas com a visualização da experiência sonora pelo meio da imagem.
O ciclo prolonga-se até segunda-feira, 6 de Abril. Os bilhetes têm o preço único de €3,5.
“Em 1877 ocorreu-me a ideia de que seria possível inventar um instrumento que fizesse pela visão o que o fonógrafo faria pela audição e que através de uma combinação dos dois, todo o movimento pudesse ser registado e reproduzido simultaneamente.”Thomas Edison
É adquirido que aquilo a que vulgarmente se chama o “sonoro” corresponde sobretudo à disseminação e vulgarização industrial da tecnologia de som no cinema a partir do final da década de 1920. Se o cinema nunca foi realmente silencioso (terá sido mudo, como refere Hollis Frampton), a mudança progressiva e generalizada para o sonoro instituiu uma tensão entre as duas entidades som/ imagem, explorada e questionada de diversos modos ao longo da história do cinema.
Por um lado, a aparente hierarquia entre o som e a imagem levou a uma tentativa de harmonização, trazendo para a primeira linha formas de visualizar os elementos sonoros e o desenvolvimento da sinestesia como um dos princípios básicos da composição visual. Por outro, criou uma genealogia particular de exploração estética e conceptual das valências entre as duas ordens, levando à criação de complementaridades entre a imagem e o som, à possibilidade de tornar visíveis os sons através da tecnologia e da síntese sonora e à busca de rupturas e descontinuidades entre os dois elementos.
O ciclo retoma o título de um texto de Paul Sharits sobre a natureza das relações sonoras e é um percurso por alguns momentos e obras, reflectindo, entre outras questões, a exploração das contradições latentes nas práticas industriais e meramente reprodutivas do som (Fisher), uma pesquisa "enciclopédica" sobre as relações entre o som e a imagem tendo por base os jogos de linguagem (Snow), a procura de uma síntese entre a representação e a música (Kagel), alguns filmes documentais em que o som é parte fundamental para a orquestração dos elementos da imagem (Cavalcanti, Wright), exemplos de fronteira na viragem do mudo para o sonoro (com o primeiro filme sonoro soviético, o espantoso Sozinha), explorações poéticas e orquestrais sobre a natureza da escrita Sonora, o privilégio do imagismo e do silêncio (Brakhage, Hutton) e o privilégio da observação visual e sonora como princípio de composição fílmica (Benning, Tsuchimoto).
O programa é o seguinte:
Quarta-feira 1
18h30
Histórias sonoras
Celles qui s’ent font de Germaine Dulac, 1930, 35mm (transferido para vídeo), 5’17’’, versão original
Odna (Sozinha) de Grigori Kozintsev e Leonid Trauberg, 1931, 35mm, 80’, versão original, legendado em português
Sozinha é um dos mais importantes filmes de ficção da transição do mudo para o sonoro. Pensado como um filme sonoro e finalmente filmado sem som, foi posteriormente orquestrado e pós-sincronizado com uma composição de Dmitri Shostakovich e complementado com diversos efeitos sonoros e alguns diálogos. Um filme notável pela forma como se mostra o contraste entre os espaços urbanos e os locais longínquos das montanhas, filmados com rigor etnográfico e um respeito pela preservação e registo dos costumes e tradições. Um dos “Discos Ilustrados” de Germaine Dulac, curtos filmes mudos que eram sincronizados ao vivo com música, estabelecendo um diálogo entre a imagem e o som.
21h30
Os ouvidos, mais atentos do que os olhos
Les Nuits Eléctriques de Eugène Deslaw, 1930, 35mm, 10’, versão original
Weekend de Walther Ruttmann, 1930, gravação em DVD, 11’10’’
Entuziazm (Sinfoniia Donbassa) de Dziga Vertov, 1930 (1972), 35mm, 65’
Unsere Afrikareise de Peter Kubelka, 1966, 16mm, 12’50’’, versão original, legendado em português
Um documentário de Dziga Vertov em três movimentos sobre o primeiro plano quinquenal soviético do final dos anos 20. É um trabalho de montagem e organização sonora das imagens numa crescente tensão entre o som e a imagem. O filme, redescoberto pelos movimentos de vanguarda da década de 60, é aqui apresentado no restauro feito por Peter Kubelka, que restituiu ao filme a relação original pretendida entre o som e a imagem. A abrir, um filme de Deslaw, que terá sido apresentado com acompanhamento ao vivo de Luigi Russolo, e a montagem sonora de Walther Ruttmann.
Quinta-feira 2
18h30
Já sabemos ver, mas agora vamos ouvir a erva a crescer
What the Water Said, nº 4-6 de David Gatten, 2007, 16mm, 17’
Le Tempestaire de Jean Epstein, 1947, 35mm, 22’
Looking at the Sea de Peter Hutton, 2000-1, 16mm, 20’
O filme de Epstein é o culminar da reflexão cinematográfica do realizador e uma verdadeira revolução sonora. É a aplicação ao cinema das possibilidades expressivas e poéticas da utilização dos movimentos da imagem e do som, neste caso do ralenti sonoro. Três explorações do poder evocativo do mar e do cinema – a materialidade da acção na película dos elementos naturais no filme de David Gatten e o imagismo silencioso do filme de Peter Hutton.
21h30
A orquestração sonora
Über ‘Song of Ceylon’ von Basil Wright de Harun Farocki, 1975, vídeo, 25’, versão original, legendado em português
Song of Ceylon de Basil Wright, 1937, 35mm, 38’
Coal Face de Alberto Cavalcanti, 1934, 35mm, 12’
Os dois documentários programados nesta sessão evidenciam a criatividade da Unidade de Produção Cinematográfica dos Correios Britânicos na década de 30. Coal Face prolonga a experimentação sonora de Song of Ceylon e as ideias de Cavalcanti sobre a orquestração eficaz da música e dos sons naturais ao serviço de uma maior expressividade documental. O filme de Harun Farocki é uma análise visual do filme de Basil Wright, realizada para a televisão em 1975.
Sexta-feira 3
18h30
O sentido silencioso do filme: Stan Brakhage
Carl Ruggles Christmas Breakfast de Carolee Schneemann, 1963, 8mm (transferido para vídeo), 9’
Desistilm de Stan Brakhage, 1954, 16mm, 7’
Scenes from Under Childhood Section #1 de Stan Brakhage, 1967, 16mm, sem som, 25’
The Riddle of Lumen de Stan Brakhage, 1972, 16mm, 14’
Passage Through: A Ritual de Stan Brakhage, 1990, 16mm, 50’
Poucos cineastas reflectiram de modo tão fundamental a relação do som com a imagem, influenciando de modo decisivo a sua prática artística. A adopção do silêncio e rejeição absoluta do som como princípio formal da maior parte dos seus filmes levou a uma aproximação confessa a modelos de montagem e composição próximos de uma concepção musical. Esta sessão é um percurso pela obra do realizador tendo em atenção algumas das suas colaborações com compositores como James Tenney.Passage Through: A Ritual é um dos mais singulares filmes do realizador, uma resposta a uma composição de Phillip Corner, inspirada por seu lado num dos seus filmes, The Riddle of Lumen. A abrir, um filme recentemente recuperado, o registo de uma visita da realizadora Carolee Schneemann ao compositor Carl Ruggles.
21h30
Robert Beavers: a arquitectura sonora do cinema
From the Notebook of… de Robert Beavers, 1971 / 1998, 35mm, 45’
AMOR de Robert Beavers, 1980, 35mm, 15’
Os filmes de Robert Beavers constituem um corpo de trabalho notável composto ao longo das últimas décadas. São filmes sobre o sentimento do lugar, da arquitectura e da paisagem, dos objectos e dos gestos que os produzem, filmes de um profundo materialismo que procuram uma relação imediata e concreta com o som e com a imagem. Para esta sessão procura-se destacar o trabalho de som nos filmes do cineasta, entre o som directo e os sons sugeridos, com um dos filmes que serve de introdução aos principais temas e à forma de trabalho de Beavers e um exemplo mais tardio na sua obra.
Sábado 4
15h30
Correspondências entre o som e a imagem
Das Tönende Handschrift de Rudolph Pfenninger, 1929, 35mm (transferido para vídeo), 10', versão original, legendado em português
Tönende Ornamente de Oskar Fischinger, 1932, 16mm, 3'20''
Five Film Exercises de John Whitney e James Whitney, 1941-1945, 16mm, 21'
Dots de Norman McLaren, 1940, 35mm, 2'21''
Pen Point Percussion de Norman McLaren, 1951, 35mm, 5'58''
Synchromie de Norman McLaren, 1971, 35mm, 7'27''
Soundtrack de Barry Spinello, 1969, 16mm, 10'
Articulation of Boolean Algebra for Film Opticals de Tony Conrad, 1975, 16mm, 10' (excerto de 75')
A procura de uma equivalência entre o som e a imagem corresponde, na história do cinema, a um género particular de exploração das possibilidades contidas no próprio material fílmico. Os filmes apresentados nesta sessão investigam a complementaridade e interacção som/ imagem, a possibilidade de tornar visíveis os sons através da síntese sonora. Inclui pequenos documentários que permitem perceber a técnica da "escrita visual" no filme dos pioneiros Pfeninger e McLaren, a ideia da ornamentação sonora em Fischinger, os espantosos exercícios visuais dos irmãos Whitney, as experiências de unidade som/ imagem de Barry Spinello e um excerto de um filme de Tony Conrad que procura, de modo diverso, questionar a unidade som/ imagem.
18h30
Mauricio Kagel, realizador
Symphonie Mécanique de Jean Mitry, 1955, 35mm, 13’, versão original
Antithese de Mauricio Kagel, 1965, 16mm (transferido para vídeo), 19’
Hallelujah de Mauricio Kagel, 1967, 16mm, 40’
Dois filmes notáveis de Mauricio Kagel, que representam duas fases distintas da sua prática cinematográfica: Antithese, o seu primeiro filme é uma aproximação cinematográfica ao plano teatral e de registo de uma composição e Hallelujah é já uma composição para cinema na equivalência total entre a imagem e o som. Em complemento, a pesquisa visual e sonora de Jean Mitry e Pierre Boulez.
21h30
A voz: série, repetição
Synch Sound de Taka Iimura, 1975, 16mm, 12’
Paul Celan Liest de Ute Aurand, 1985, 16mm, 5’
Picture and Sound Rushes de Morgan Fisher, 1973, 16mm, 11’
Hapax Legomena III: Critical Mass de Hollis Frampton, 1971, 16mm, 25’
Done To de Lawrence Wiener, 1974, 16mm (transferido para vídeo), 20’
Episodic Generation de Paul Sharits, 1978, 16mm, 30’
Sessão organizada segundo um princípio comum a todos os filmes: a exaustão de uma forma através da repetição e da reverberação. O filme de Iimura é um jogo formal entre o tempo e os elementos sonoros e visuais de uma banda de som. Paul Celan Liest é uma visualização da voz de Paul Celan a ler três poemas. Morgan Fisher explora as ironias que surgem da normatividade dos processos técnicos e industriais no cinema, esgotando as possibilidades de relação som / imagem. Os filmes de Frampton e Wiener colocam em cena uma batalha de dissonâncias e cortes sonoros, numa estrutura de repetição e exaustão metafórica entre o material fílmico e o que vemos nas imagens. Finalmente, o filme de Paul Sharits reflecte o interesse do autor pelo som, na versão para ecrã de uma instalação sobre o eco e a perda da definição da imagem e do som pela sobreposição.
Domingo 5
15h00
Michael Snow e as relações som – imagem
Finding His Voice de F. Lyle Goldman e Max Fleisher, 1929, 35mm (transferido para vídeo), 10’39’’
Rameau’s Nephew by Diderot (Thanks to Dennis Young) by Wilma Schoen
de Michael Snow, 1974, 16mm, 270’
Uma série de tentativas para realizar um verdadeiro “filme falado” da autoria de Wilma Schoen (alter-ego do realizador), tendo como actores Annette Michelson, Nam June Paik, entre muitos outros. O resultado é um vigoroso diálogo entre o som e a imagem, composto por vinte e cinco sequências sonoras com durações que vão dos 4 aos 55 minutos, separadas por vinte e sete abstracções cromáticas e sem qualquer sequência narrativa entre si. Desde o seu primeiro filme que Michael Snow se concentrou na questão da composição de relações fortes entre o som e a imagem. Rameau’s é a sua composição mais radical nessa sua reflexão sobre a natureza do som no cinema e o seu confronto com as mais variadas modalidades da imagem (da imagem abstracta à representação “realista”) e da linguagem enquanto categoria da representação. A introduzir, uma animação sobre um filme mudo que procura a sua voz.
Segunda-feira 6
18h30
Uma sinfonia urbana
Sound Track de Guy Sherwin, 1977, 16mm, som, 9’
Aru Kikanjoshi (Um Assistente de Maquinista) de Tsuchimoto Noriaki, 1965, 35mm, 37’, versão original, legendado em inglês
Dokyumento Rojo (Na Estrada: um documento) de Tsuchimoto Noriaki, 1965, 35mm, 54’, versão original, legendado em inglês
Na Estrada: um documento é o primeiro documentário do realizador e é bastante diferente dos filmes que realizou desde então (sobretudo centrados na tragédia ambiental e humana de Minamata). É um retrato da vida de um taxista na Tóquio de 1963 e um documento sobre as precárias condições de trabalho na cidade em transformação. Na atenção que presta aos gestos e sons da cidade, o filme constitui uma espantosa sinfonia urbana. Em complemento, o primeiro filme do realizador e, a abrir a sessão, um filme de Guy Sherwin, uma filmagem dos carris de uma ferrovia cuja imagem transborda para a banda sonora, sendo o som o resultado directo daquilo que vemos projectado.
21h30
Olhar e ouvir: James Benning
RR de James Benning, 2007, 16mm, 112’
RR é composto por 43 planos fixos de comboios de mercadorias, cuja duração é determinada pelo tempo que demoram a passar na imagem. Como sempre no trabalho do realizador norte-americano, o filme joga-se no equilíbrio entre a observação de um dado espaço / tempo e as expectativas provocadas pelo reconhecimento dessas imagens e sons quando contrastados com a história geográfica, política e social dos Estados Unidos.